terça-feira, 1 de novembro de 2011

A Medicina e a Igreja

Trabalho apresentado no curso de graduação da Universidade Metodista de Piracicaba, Faculdade de Ciências Humanas, Curso de Licenciatura em História e Licenciatura em Filosofia, para avaliação da disciplina de História Medieval.

Por Andrea Mascarello, Andrea Ruocco, Daniela Smeets e Felipe Lucate, sob orientação da Prof. Dra. Karla Bessa.


Introdução

Este trabalho parte de percepções após a leitura da obra A Feiticeira de Jules Michelet. A delimitação do tema, dentre tantos aspectos únicos que caracterizam esta personagem, surge da nossa curiosidade em compreender um âmbito que acentua esta mulher tão rica e complexa apresentada pelo autor. Assim, pensando também nas doenças que assolavam os povos e nos recursos utilizados no medievo para lidar com algo “tão assustador”, buscamos compreender quem é esta feiticeira que cura, sua relação com as plantas e as florestas (que serão seus principais instrumentos) e qual é a medicina da época da qual a feiticeira dialoga e contribui.


Alguns apontamentos sobre Michelet e a Feiticeira
Esta obra, escrita 1862, traz muito mais que um estudo historiográfico. Jules Michelet, nascido em 1798 em Paris, professor no Collège de France e tendo um acervo riquíssimo em mãos ao ser chefe da seção histórica dos arquivos nacionais, trabalha algo inusitado para os estudos do século XIX: coloca a mulher no centro da história, como mote de mudança social e cultural, e, fugindo dos grandes personagens, desmonta toda narrativa metódica e positivista que compõe a passagem do século XIX para o XX, trazendo a esfera do popular para narrar a Idade Média:

“(...) Michelet, para quem o povo conta mais antes de tudo, sentira-se à vontade na Idade Média e ajuda-nos pois a encontrar, se não a realidade social, pelo menos a imagem de uma época desta mesma realidade. Mas Michelet, sondando o popular, vai mais longe e mais perto.
(...) Avançando pelos silêncios da história, Michelet descobriu uma Idade Média das margens, da periferia, da excentricidade que pode e deve inspirar ainda o medievalista hoje (LE GOFF, 1980, p. 40-41)."

Além de trazer esta mulher tão marginalizada e lhe tirar o silêncio em um texto sensível que a enaltece, o autor, que permeia as gerações românticas ao saber aliar erudição e poesia (LE GOFF, 1980), dá sinestesia às suas fontes através de uma escrita mais literária, porém, não menos consistente. Assim, encontramos A Feiticeira e sua relação com a medicina.


A medicina, as doenças e os recursos do medievo

Muitas foram as doenças que assolaram a população na Idade Média, doenças que já faziam parte da vida cotidiana: “(...) As doenças da Idade Média, tanto quanto se pôde aperceber, embora indefinidas, foram, principalmente, a fome, a inanição e a depauperação sanguínea. Tal é o quadro com que se defrontam as artes plásticas da época (MICHELET, 1976, p. 93)."

A fome era um fator importantíssimo para a propagação de doenças, visto que foi uma época de agricultura fraca por conta do solo devastado na maioria do território europeu. É importante também ressaltar as péssimas condições de higiene daquele tempo, sendo que o lixo, por exemplo, era atirado das oficinas e das casas, direto para as ruas, trazendo uma acumulo de ratos, insetos e pulgas, sendo que os mesmos eram responsáveis pela transmissão de uma das principais doenças da Idade Média: a peste bubónica, conhecida por peste negra.

O primeiro caso de peste negra na Europa foi, na Itália, no ano de 1347. A doença, que veio do Oriente, logo se espalhou e com a facilidade que ela encontrou de se propagar devido à sujeira e ao lixo, no ano seguinte, 1348, em Portugal, matou cerca de um terço da população. A concepção da importância que a higiene e a limpeza local tinham para a saúde só surgiu muito tempo depois, no século XIX.

Outras doenças da época são a lepra, o sarampo, a tuberculose, a varíola e a escarlatina. Para a lepra, que é uma doença que causa infecções na pele, devido ao medo do contagio, o procedimento era afastar os doentes e, na maioria das vezes, haviam algumas leis que proibiam os leprosos de entrarem nas cidades. Costumava-se também construir casas, que eram chamadas de leprosarias ou gafarias, para onde eram mandadas as pessoas contagiadas pela doença, podendo conviver juntas. Esses locais eram geralmente construídos distantes das cidades, justamente para prevenir o contágio da população.

Já para as demais doenças citadas, como Sarampo, Tuberculose, Varíola e Escarlatina (doença que atingia principalmente as crianças), não se tinha tratamento. A grande parte da população acreditava que a melhor maneira era conviver com a doença ou aceita-la como um castigo de Deus.

Acreditava-se também, em relação à alguns reis, como por exemplo o rei da França Filipe I, e da Inglaterra, Henrique I, que apenas com o toque de suas mãos era possível que os reis pudessem curar as pessoas. Muitos reis, no contato com os camponeses, tinham suas vestes tocadas pelo povo, pois se acreditava que esse gesto ajudaria na plantação, resultando em uma boa colheita.

“(...) Dos reis de França, desde Filipe I, pelo menos, provavelmente, depois de Roberto o Piedoso, dos res de Inglaterra, depois de Henrique I, dizia-se que curavam certas doenças pelo contacto das suas mãos. Quando, em 1081, o imperador Henrique IV - apesar de excomungado – atravessou a Toscânia, os camponeses que acorreram ao seu encontro, esforçavam-se por tocarem o seu vestuário, persuadidos de, assim, garantirem colheitas felizes (BLOCH, 1987, p. 418)."

Mas ainda assim, com todos esses fatores presentes no cotidiano do povo medieval, a medicina tinha alguma funcionalidade. Basicamente, a maioria dos médicos era de origem árabe ou judaica, mas poucos tinham acesso aos serviços prestados por eles. Exceto pelo médico árabe ou judeu, pago a peso de ouro pelos soberanos, a medicina só era praticada nos umbrais das igrejas e às vezes nos batistérios (MICHELET, 1976, p.93)."
Algumas cirurgias já eram realizadas naquela época, mas com muita precariedade, apenas em casos de risco de morte. Sem conhecimento nenhum sobre anatomia humana, e muito menos sobre anestésicos ou antissépticos confiáveis, as cirurgias eram muito dolorosas, ou seja, o paciente com dor deveria, sem nenhuma outra opção de escolha, se submeter a mais dor para tentar se curar. Muitas vezes essas cirurgias eram realizadas por monges que tinham acesso a alguma literatura médica. Mas, em 1215, a Igreja não tardou em proibir essa prática, sendo que o papel de cirurgião acabou, por muitas vezes, sendo adotado pelos fazendeiros, que tinham alguma prática no atendimento a animais.

Uma prática muito popular na Idade Média era a sangria, pois se acreditava que curava qualquer doença. Os médicos também acreditavam que as doenças em geral podiam ser causadas por um inchaço do corpo, por excesso de líquido no corpo. A sangria podia ser realizada com sanguessugas, ou simplesmente com um corte na veia, cotidianamente feito no braço.

As mulheres grávidas tinham um sofrimento ainda mais agudo. Sem quase nenhum aparato, os partos eram muito dolorosos, habitualmente realizados por parteiras, que mais tarde foram perseguidas pela Igreja por se utilizarem de métodos para avaliar as dores das pacientes. Quando o bebê estava morto, ainda dentro do útero da mãe, se utilizava uma espécie de faca, para tirar o bebê de dentro da paciente e para “facilitar” a retirada do feto.

Alguns artefatos médicos e cirúrgicos já existiam como uma espécie de seringa, um tipo de anestésico composto por suco de alho, suco de cicuta, ópio, vinagre e vinho que era dado ao paciente antes de uma cirurgia, mas que, em alta dosagem poderia levar o paciente a morte. Outro exemplo era uma agulha, especialmente destinada para cirurgias de catarata, em que o instrumento era levado até o fundo do olho do paciente e na maioria das vezes não surtia efeito algum, pelo contrário, a visão ficava ainda mais debilitada.

Em sua maioria, o tratamento médico da Idade Média era baseado em concepções científicas, crenças pagãs e religiosas. Um exemplo de medicina, que misturava muito bem essas três práticas, era a de Paracelso, importante médico do período Medieval, hoje considerado o pai da homeopatia, do qual trataremos mais adiante.


A medicina e a Igreja

Desde o início da era cristã, a medicina era, e talvez seja até hoje, sob alguns aspectos, mal vista pela Igreja. Era considerada uma prática de feitiçaria, proveniente de Satanás, o príncipe do mundo. A mulher medieval, que possuía uma relação estreita com a natureza, era de certa forma, condicionada a aprender seus mistérios e a manipulá-la. Essa prática logo levaria o ser humano à morte como também o livraria de doenças e maldições que assolavam a época.

A natureza fê-las feiticeiras.” É o espírito próprio da Mulher e o seu temperamento. Ela nasce Fada. Pelo retorno regular da exaltação, é Sibila. Pelo amor, torna-se Mágica. Pela finura e a malícia (muitas vezes fantasiosa e benéfica), é Feiticeira e enfeitiça, ou pelo menos adormece e ilude os males (MICHELET, 2003, p. 11)."

Para a Igreja, todo sofrimento era o preço do pecado e toda a cura para os males era o arrependimento e a fé. No entanto, esta começou a se desesperar com as obras de feitiçaria e seu desespero acabou destacando a feiticeira ainda mais.

Quanto às feiticeiras, não tinham muita escolha senão fugir e se isolarem nas florestas, pois a perseguição da Igreja e os processos eram tão rígidos que muitas delas foram torturadas e queimadas apenas por serem belas demais ou ricas (MICHELET, 2003). Eram obrigadas a pactuarem com Satanás e se considerarem suas esposas, afinal, como não existia a ciência dos dias de hoje, não sabiam explicar a reação de suas poções, portanto, se não vinha da Igreja (Deus), vinha de Satanás!

A mulher via em Satanás uma espécie de liberdade e justiça, ela crescia e adquiria maneiras de se defender e ser notada. Algumas pessoas, cansadas e cuja fé já não era suficiente para a cura de seus males, passaram a visitar as feiticeiras escondidos da Igreja. As feiticeiras faziam o destino e proporcionavam resultados mais rápidos do que o arrependimento e a oração. Ao passo que, a Igreja, depositava a esperança no arrependimento e na morte, pois o sofrimento era mais do que justo diante de uma vida pecaminosa.

Um novo mundo era descoberto com a feitiçaria, as médicas do medievo arriscavam muito e descobriam coisas incríveis. Com isso, a Igreja não teve muita opção senão liberar algumas dessas práticas medicinais, porém, estabeleceu critérios; quem ousasse curar sem ter estudado estaria comprando passagens diretamente para a fogueira. Entretanto, a mulher não podia estudar, pois muito provavelmente seria perseguida e violentada pelos cristãos na escola.

O poder da Igreja era muito grande que, por medo, muitas pessoas continuaram a freqüentá-la, mas a verdadeira missa, como propõe Michelet, acontecia à noite em meio aos pântanos onde os rituais de louvor ao esposo Satanás ocorriam e a medicina alcançava novos horizontes.


A feiticeira e sua contribuição na medicina

Se ora as doenças e pestes assolavam a população, se a fome era sua contribuinte, se os recursos médicos ainda precários e se a Igreja negligenciava o poder medicinal da flora e condenava sua utilização ligando-a a Satanás, a Feiticeira, em sua excentricidade [que somente era permitida por sua exclusão na floresta] se arriscava em suas experimentações já que “ninguém então pensava que, aplicados exteriormente, ou tomados em dose muito pequena, os venenos são remédios” (MICHELET, 2003, p.99). Muitas vezes estas mesmas plantas utilizadas em outros momentos (como as da família das Solanáceas, a doce-amarga Meimendro e a Beladona), levando o nome de plantas das bruxas, traziam as acusações de executoras de mortes e fabricantes de encantamentos. Nos rituais do Sabat, as ervas das feiticeiras misturadas ao hidromel dentre outras bebidas alcoólicas, punha a multidão a dançar luxuriosamente (em oposição às danças epiléticas que só aprofundavam o problema de agitação epilética comum do séc. XIV), e trazia uma revolução no que poderia se chamar de “reabilitação do ventre e das funções digestivas” (MICHELET, 2003, p.102).

Le Goff, ao interpretar esta personagem proposta por Michelet, dirá que o que salvou a Idade Média é o que ela própria condenou e martirizou:

Michelet vê a fecundidade, sobretudo ao nascer das ciências modernas, dadas a luz pela feiticeira. Enquanto os clérigos e os escolásticos se enterravam em um mundo de imitação, de vaidade, de esterilidade, de antinatureza, a feiticeira descobria o corpo, o espírito, a medicinas, as ciências naturais.” (LE GOFF, 1980, p. 35)

Estas mulheres bruxas, que por serem mulheres já estavam à margem, na condição inatingível da Virgem pura, e que por serem mulheres eram privadas de voz e conhecimento – e seria inimaginável uma médica oficializada para época, encontravam sua força e autoridade no manuseio da natureza.

Sem dúvida, para tantas outras camponesas subjugadas, a Feiticeira foi seu único médico já que “nunca nesses tempos, a mulher teria admitido um médico homem, confiaria nele, lhes diria os seus segredos. As bruxas a observam sozinhas (...)” (MICHELET, 2003, p. 97-98). Eram obstetras, ginecologistas!

Porém seu reconhecimento [se é que podemos dizer que sua contribuição foi reconhecida] foi tardio tanto para ciência médica quanto para a historiografia e daí, mais uma vez, a importância desta obra.

Um dos poucos nomes, citado pelo autor, que exemplifica este conhecimento profundo das feiticeiras sobre processos de cura e manuseio das plantas para além do conhecimento já formalizado baseado sobretudo em médicos judeus e árabes, está na fala Paracelso:

“Onde teria ela vivido a não ser nos pântanos selvagens, essa infeliz tão perseguida, a maldita, a proscrita, a envenenadora que curava e salvava? A noiva do Diabo e do Mal encarnado, que tanto bem fez, como disse o grande médico da Renascença. Quando Paracelso, na Basiléia, em 1527, incendeia toda a medicina, declara nada saber além do que aprendeu com as bruxas (MICHELET, 2003, p. 14)."


Paracelso

Paracelso (1493-1541) foi um importante médico na Idade Média. Filho de um conceituado médico da época iniciou seus estudos na Alemanha, onde foi discípulo de um abade que era alquimista e se dedicava ao ocultismo.

Paracelso, que na verdade se chamava Philippus Aureolus Theophrastus Bombast von Hohenheim, adotou o nome de Paracelso (ou Paracelsus) por conta do médico Aulo Cornélio Celso, famoso médico romano do século I, e seu nome significa “para além de Celso”.

Além de médico, Paracelso foi ainda filósofo, alquimista, químico, astrólogo e atualmente é considerado o pai da medicina homeopática. Sua contribuição para essa nova medicina, se deve ao fato de Paracelso ser um dos primeiros médicos a valorizar a cultura pagã dentro da medicina da época.

“O único médico admitido ali por Satã, Paracelso, viu uma terceira personagem que às vezes se deslizava na assembleia sinistra e que representava a cirurgia. Era o cirurgião daqueles tempos de bondade, o carrasco, o homem de mão ousada, que manejava oportunamente o ferro, que quebrava os ossos e sabia juntar novamente, que matava e às vezes salvava (MICHELET, 1976, p. 15)."

Outras contribuições foram novos métodos para a patologia, farmácia, e para cirurgias. Em 1518 serviu como cirurgião na Guerra dos Países Baixos. Em 1528 produziu o primeiro manual de cirurgia. Já em 1530 fez uma importante descrição sobre a Sífilis, na qual ele afirma que a doença poderia ser curada apenas com algumas doses de mercúrio. Seus estudos sobre os a alquimia na medicina foram resgatadas no século XIX, assim surgindo a homeopatia conhecida nos nossos dias. Morreu em 1541, debilitado mentalmente e envaidecido pelo sucesso de seus estudos, em Salzburgo, hoje Áustria.


Conclusão

Com os apontamentos desse trabalho, tivemos uma breve percepção do quanto o próprio cenário contribuiu para o nascimento da feiticeira e, o quanto a própria Igreja a fez crescer. A medicina que, a princípio estava ameaçada, ganhou tanta força que a Igreja não teve muita opção senão aceitar algumas de suas práticas. Práticas das quais garantiram a sobrevivência dos povos e contribuíram para o desenvolvimento da medicina que temos nos dias atuais.


Referências Bibliográficas

FONTE DA IMAGEM : <http://mahabaratha.vilabol.uol.com.br/translation/bruxaria11.jpg>. Acesso em: 01/11/11.
BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70, 1987.
GUIA DO ESTUDANTE – Medicina na Idade Média: Doutor Sinistro. Disponível em: http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/medicina-idade-media-doutor-sinistro-433440.shtml. Acesso em: 23/10/11.

HYPE SCIENCE – Dez agonizantes tratamentos da Idade Média. Disponível em: <http://hypescience.com/dez-tratamentos-agonizantes-da-idade-media/>. Acesso em: 17/10/11.

LE GOFF, Jacques. As Idades Médias de Michelet. In:_ Para Um Novo Conceito de Idade Média. Civilização do Ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1980. p. 19-60.

MICHELET, Jules. A Feiticeira. Tradução de Ana Moura. São Paulo: Aquariana, 2003. 142 p.

MICHELET, Jules. A Feiticeira. Tradução de Ronaldo Werneck. São Paulo: Círculo do Livro, 1976, 2 ed. 308 p.

PORTAL PARSIFAL – Biografia Paracelso. Disponível em: <http://www.nautilus.com.br/clientes/pontes/biografia/paracelsus.htm>. Acesso em: 17/10/11.

VEIAS DA HISTÓRIA – Doenças na Idade Média. Disponível em: <http://veiasdahistoria.blogspot.com/2011/06/doencas-na-idade-media.html>. Acesso em: 17/10/11.

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