domingo, 19 de junho de 2011

Escolas filosóficas do período helenístico: o Epicurismo

Epicuro: fundador do "Jardim" - (341-270 a.C.)

"Que o jovem não espere para filosofar, nem o velho de filosofar se canse. Ninguém, com efeito, é ainda imaturo ou já está demasiado maduro para cuidar da saúde da alma. Quem diz não ter ainda chegado sua hora de filosofar ou já ter ela passado, fala como quem diz não ter ainda chegado ou já ter passado a hora de ser feliz."
Epicuro, Carta a Menequeu


Prelúdio


Durante o período que se seguiu após Alexandre Magno ter unificado o mundo antigo, a dinastia dos Ptolomeus quis fazer da cidade de Alexandria, um núcleo intelectual a fim de preservar a cultura grega e a oriental. Nessa época, enquanto a ciência progredia, a filosofia tornava-se privilégio de alguns poucos pensadores que não tinham interesse na pesquisa científica. Havia duas grandes escolas filosóficas nessa época: o Epicurismo e o Estoicismo (ABBAGNANO,2007,p.24-25).

O objetivo principal desse material é descrever os princípios básicos do pensamento de Epicuro, fundador da primeira grande escola filosófica, em ordem cronológica, do período helenístico. Neste trabalho, também será demonstrado o quanto o pensamento epicurista revolucionou sua época e influenciou o homem a não mais temer a morte e os deuses. 


A Origem do Pensamento de Epicuro


Epicuro nasceu por volta de 342/341 a.C., no entanto, seu local de nascimento é uma incógnita. Nos poucos textos que chegaram até nós, o pensador é apresentado como cidadão de Atenas, da dêmos (aldeia) de Gargetus, sendo levado mais tarde até a cidade de Samos onde já haviam alguns colonos atenienses. Outros autores, principalmente o erudito Festugière, consideram que Epicuro nasceu na própria cidade de Samos (MORAES, 1998, p.16).

Aos 12 anos de idade, Epicuro leu os poemas de Hesíodo, fundador da maior cultura literária helênica após Homero, porém, não entendeu o que o poeta descreve no verso que diz: “O primeiro a nascer foi o caos”, pois se tudo se origina do caos, donde se origina o próprio caos? – essa questão atormentava o jovem. Para Epicuro, era contraditório dizer que algo é a origem de tudo, sendo que tudo inclui obrigatoriamente todas as coisas possíveis e imagináveis (MORAES, 1998, p.17).

O jovem Epicuro não obteve respostas satisfatórias de seus mestres ao longo de sua formação, portanto, apropriando-se do atomismo de Leucipo e Demócrito e da moral do cirenaico Aristipo, desenvolveu uma nova interpretação e, com efeito, os princípios de sua filosofia cujo objetivo ser acessível a todos que estivessem dispostos a buscar a felicidade através da lucidez da serenidade da alma (MORAES, 1998, p.18-19).

Fiel à sua filosofia, Epicuro enfrentou os cruéis influxos do destino, diferentemente dos supersticiosos, sem atribuí-los à imaginária cólera divina.

[...] com pouco mais de 30 anos, Epicuro havia construído o essencial de seu pensamento, desenvolvendo, sobre os fundamentos do atomismo de Leucipo e Demócrito, seu original hedonismo, orientado não para os prazeres vulgares e imediatos, mas para aqueles que acompanham a firmeza do caráter e a lucidez da inteligência (MORAES, 1941, p.21).

Epicuro fundou sua primeira escola filosófica em Mitilene, na ilha de Lesbos ao norte de Samos. Não tardou, porém, a deslocar-se para Lâmpsaco onde reuniu muitos discípulos, entre os quais alguns ricos o bastante para oferecer-lhe condições de adquirir uma casa e um jardim na cidade de Atenas por volta de 307/306 a.C., sendo a primeira das grandes escolas filosóficas, em ordem cronológica, do período helenístico (REALE, 1990, p.237).


O Pensamento Epicurista


O próprio lugar escolhido por Epicuro para sua escola é a expressão da novidade revolucionária do seu pensamento: não uma palestra, símbolo da Grécia clássica, mas um prédio com um jardim (que era mais um horto), nos subúrbios de Atenas. O jardim estava longe do tumulto da vida pública citadina e próximo do silêncio do campo, aquele silêncio e aquele campo que não diziam nada para as filosofias clássicas, mas que se revestiam de grande importância para a nova sensibilidade helenística. Por isso, o nome “Jardim” e os “filósofos do jardim” (que, em grego, diz-se Képos) passou a indicar a escola e as expressões “os do Jardim” tornaram-se sinônimos dos seguidores de Epicuro, os epicuristas (REALE, 1990, p.237).

O Jardim de Epicuro - artista desconhecido


O pensamento de Epicuro resume-se em duas teses principais: o hedonismo (o prazer é o bem supremo) e o atomismo (MORAES, 1998, p.7), seu objetivo central é libertar o homem das superstições divinas e do temor da morte (MORAES, 1998, p.8).

A tese do prazer identificado como sendo o bem supremo, havia sido fortemente sustentada pelo cirenaico Aristipo, mas ganhou um significado diferente com Epicuro. De acordo com o pensador, não se tratava apenas de o ser humano buscar todos os prazeres que lhe parecesse bons, mas saber identificar os prazeres mais propícios para atingir a felicidade (MORAES, 1941, p.7). Ainda segundo Epicuro, tal felicidade pode ser alcançada por qualquer um através da filosofia (ABBAGNANO, 1984, p.36).

Já o atomismo remonta a Leucipo (séc. V a.C.) e a Demócrito (460-370 a.C.), no entanto, Epicuro concebe o mesmo compreendendo a ordem cósmica como sendo um efeito mecânico derivado do choque entre os átomos, com efeito, o princípio cosmogônico não possui qualquer intervenção divina.

Em relação a morte, esta seria apenas a separação dos átomos, portanto, não há castigos ou quaisquer punições inventadas pela ignorância e superstição (MORAES, 1998, p.8).
 
Os ensinamentos de Epicuro perduraram até o século IV d.C. (ABBAGNANO, 1984, p.35).


A Canônica


Epicuro chamou canônica, a disciplina que orienta o homem para a felicidade, através de critérios de verdade, constituídos por sensações, antecipações e sentimentos (ABBAGNANO, 1984, p.37).

De acordo com Epicuro, as sensações eram a realidade em sua totalidade, e a única maneira de captá-las, é através dos sentidos. A sensação é uma alteração produzida por algo cujo efeito é correspondente e adequado. Também é objetiva e verdadeira, pois é fruto da própria estrutura atômica da realidade. Os sentidos captam os simulacros constituídos de átomos tais como eles são (REALE, 1990, p.239).

Como segundo critério de verdade, Epicuro descreve as antecipações, que são memórias daquilo que se mostraram do exterior. Essa memória permite-nos conhecer antecipadamente as características das coisas correspondentes sem tê-las diante de nós.

Como terceiro e último critério de verdade, Epicuro coloca os sentimentos de prazer e dor. Estes sentimentos, segundo Epicuro, possuem a mesma objetividade de todas as demais sensações, porém, têm uma importância particular que é o critério para distinguir o bem do mal, constituindo assim o critério da escolha ou da não escolha.

Embora esses cânones possuam um valor de verdade em comum, o qual consiste numa evidência imediata, o raciocínio não pode lidar com isso, sendo uma operação mediadora, dando origem a opinião e, com ela, a possibilidade de erro (REALE, 1990, p.240-241). Por essa razão, os critérios de verdade criados por Epicuro foram determinados com base nos quais é possível distinguir as opiniões verdadeiras das falsas. São consideradas opiniões verdadeiras aquelas que são comprovadas e não desmentidas pela experiência e pela evidência. Obviamente, as opiniões falsas são aquelas que são desmentidas pela experiência e evidência e não são comprovadas.


A Física


“A ‘física’ de Epicuro é uma ontologia, uma visão geral da realidade em sua totalidade e em seus princípios últimos” (REALE, 1990, p.242). Esta pode ser caracterizada por 4 aspectos principais:

1 – “Nada nasce do não-ser”, do contrário, tudo poderia gerar-se de qualquer coisa sem um elemento gerador específico. E nada “dissolve-se do nada”, do contrário, tudo deixaria de existir. De acordo com Epicuro, isto é a realidade em sua totalidade; tudo sempre foi como é agora e sempre será assim.

2 – A totalidade da realidade é determinada por dois componentes principais: os corpos e o vazio. Os corpos são provados através dos sentidos, enquanto a existência do espaço e do vazio, através do movimento. Ao passo que, para que exista movimento, é necessária a existência de um espaço vazio para que os corpos possam se deslocar. “O vazio não é absoluto não-ser, mas exatamente ‘espaço’ ou, como diz Epicuro, ‘natureza intangível’. Além dos corpos e do vazio tertium non datur, porque não seria pensável nada que exista por si mesmo e não seja alteração dos corpos” (REALE, 1990, p.242).

3 – A realidade é infinita em sua totalidade, porém, cada um de seus princípios constitutivos deve ser infinito também. Um vazio finito não pode acolher corpos infinitos, com efeito, corpos finitos se perderiam num espaço infinito.
 
4 – Alguns corpos são compostos; outros, ao contrário, são simples e indivisíveis (átomos). A admissão do átomo se faz necessária, do contrário, a divisão dos corpos seria infinita, ocasionando a dissolução das coisas no não-ser.

O atomismo de Epicuro difere do atomismo de Leucipo e Demócrito em três aspectos essenciais:


1 – Os antigos atomistas atribuíam ao átomo três características fundamentais: figura, ordem e posição. Epicuro, por sua vez, atribui ao átomo: figura, peso e grandeza. Os átomos possuem formas diferentes – nem sempre geométricas, mas são todos de mesma natureza. Essas diferentes formas são necessárias para explicar as diversas qualidades fenomênicas que nos aparecem. O mesmo vale para a grandeza dos átomos. Quanto ao peso, este é necessário para explicar seu movimento (REALE, 1990, p.243).

De acordo com Epicuro, as formas dos átomos são finitas, pois, do contrário, poderiam variar até um tamanho visível. Ao passo que, o número de átomos é infinito.

2 – A introdução da teoria dos “mínimos”. Epicuro chama de mínimo a unidade de medida para a grandeza das partes do átomo. Segundo Epicuro, os átomos variam em tamanho e são compostos por partes distinguíveis, porém, inseparáveis. A estrutura do átomo é indivisível, portanto, suas partes devem se limitar a um mínimo de tamanho para não diminuírem ao infinito, o que seria absurdo.

3 – Os antigos atomistas falavam sobre os átomos se moverem em todas as direções. Ao passo que, Epicuro sustenta que eles se movimentam apenas em uma direção, no sentido de queda para baixo, num espaço vazio e infinito. A velocidade da queda dos átomos independe de grandeza e/ou peso.

Essa concepção de movimento levou à seguinte questão: “Como os átomos não caem segundo linhas paralelas, no infinito, sem nunca se tocar”? Em resposta a essa questão, Epicuro introduz a teoria da “declinação” dos átomos (clinámen), onde estes poderiam se desviar a qualquer momento num intervalo mínimo da linha reta, encontrando assim, outros átomos.

A teoria da declinação dos átomos também gerou dúvidas, pois ela contradizia a teoria de que, “do nada, nada procede” defendida por Epicuro, uma vez que, era ocasionada a partir do não-ser. Esse fenômeno foi classificado como sendo uma mera casualidade, já que não estava vinculado à sorte e nem à liberdade, que são atributos de corpos dotados de inteligência.

Dos infinitos princípios atômicos derivam infinitos mundos. Alguns são iguais ou análogos ao nosso, outros muito diversos. É pois de se notar  que todos esses infinitos mundos nascem e se dissolvem, alguns mais rapidamente, outros mais lentamente, na duração do tempo. Se bem que os mundos não são apenas infinitos na infinitude do espaço num dado momento do tempo, mas também são infinitos na infinita sucessão temporal. E, embora em cada instante existam mundos que nascem e mundos que morrem, Epicuro bem pode afirmar que “o todo não muda”. Com efeito, não só os elementos constitutivos do universo permanecem perenemente como são, mas também todas as suas possíveis combinações permanecem sempre atuantes, exatamente por causa da infinitude do universo, que dá sempre lugar à concretização de todas as possibilidades (REALE, 1990, p.245).


A Ética


A conclusão de que o bem é o prazer já havia sido extraída pelos cirenaicos, porém, ganha uma concepção diferente com Epicuro. Os cirenaicos sustentavam que o prazer é um “movimento suave”, enquanto que a dor, um “movimento violento” (REALE, 1990, p.245). Estes negavam um estado de quietude onde nem o prazer e nem a dor estavam presentes. Para Epicuro, esse estado intermediário é de extrema importância, é considerado o ápice do prazer.

Os cirenaicos também consideravam os prazeres e as dores físicas maiores do que os psíquicos. Ao passo que, Epicuro sustentava exatamente o oposto (REALE, 1990, p.246). O hedonismo de Epicuro, portanto, consiste na ausência de dor no corpo (aponia) e na falta de perturbação da alma (ataraxia).

Os prazeres deveriam ser alcançados através da sabedoria, que seria um instrumento para identificar aqueles que não causariam dor e nem perturbação. Em outras palavras, os prazeres mais propícios para atingir a felicidade (REALE, 1990, p.247). Epicuro distinguiu 3 grupos de prazeres para garantir aponia e a ataraxia:

1 – prazeres naturais e necessários: únicos prazeres válidos, pois amenizam a dor do corpo. São os prazeres ligados à conservação da vida, como por exemplo: comer quando se tem fome, beber quando se tem sede etc.

2 – prazeres naturais mas não necessários: variações supérfluas dos prazeres naturais, como por exemplo: comer bem, beber bebidas refinadas, etc.
 
3 – prazeres não naturais e não necessários: desejos relacionados a riqueza, honra, poder etc.

De acordo com Epicuro, o primeiro grupo de desejos é sempre satisfeito, pois tem um limite ideal, que consiste na eliminação da dor. O segundo grupo de prazeres, não tem o limite do primeiro grupo e intensificam o grau de prazer, podendo causar danos notáveis ao corpo. O terceiro grupo de prazeres, não elimina a dor e ainda causa perturbação na alma.

Com base nessas premissas, devemos nos concentrar nos prazeres do primeiro grupo, evitar os do segundo grupo e descartar totalmente os do terceiro grupo. Somente assim o homem é capaz de atingir a felicidade através da autarquia, que há muito se perdeu em meio ao contexto social onde predomina a política (REALE, 1990, p.247-249).


Conclusão


Com base nos fundamentos do pensamento de Epicuro, o homem não só se libertou do temor da morte e dos deuses, mas também compreendeu que, a felicidade poderia ser atingida por qualquer um, uma vez que o homem depende apenas dele mesmo para ser feliz. 

Epicuro não nega a existência dos deuses, mas sustenta que eles apenas não se ocupam dos assuntos do homem e do mundo. O mundo sempre foi o que é e sempre será dessa maneira, pois tudo o que se apresenta diante de nós, se gera a partir do choque mecânico entre os átomos, que, embora tenham a mesma natureza, possuem formas diversas.


Referências Bibliográficas


ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bossi. São  Paulo: Editora Martins Fontes, 2007. 5ª Edição. p.24-25.
ABBAGNANO, N. História da Filosofia Volume II. Trad. António Borges Coelho. Lisboa: Editorial Presença, 1984. 3ª Edição. p.33-45.
MORAES, J. Q. de. Coleção Logos: Epicuro: as luzes da ética. São Paulo: Editora Moderna, 1998. 1º Edição. 110p.
REALE, G. História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média Volume I - Giovanni Reale, Dario Antisieri. São Paulo: Editora Paulus, 1990. 3ª Edição. p.237-251.