Depois de muito tempo sem atualizar o blog, conversei com meu estimado parceiro de filosofia Rafael Corrêa e decidimos postar o rascunho de uma apresentação que fizemos sobre o conceito de estado de natureza.
A apresentação sobre estado de natureza foi critério de avaliação da disciplina de Filosofia Política, ministrada pelo estimado mestre Paulo Morgado.
O resumo foi feito à partir do capítulo primeiro, "O Estado de Natureza", do livro Introdução à Filosofia Política, de Jonathan Wolff.
Espero que o rascunho possa somar para o conhecimento de vocês.
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Destruction of Leviathan - by Gustave Doré |
Introdução
[...]
Tomamos como adquirido o facto de vivermos num mundo de instituições políticas:
o governo central, o governo local, a polícia, os tribunais. Estas instituições
distribuem e administram o poder político. Colocam pessoas em cargos de
responsabilidade e estas pessoas podem reivindicar o direito a mandar-nos agir
de determinadas formas. E, se desobedecermos e formos apanhados, seremos
castigados. A vida de cada um de nós é parcialmente estruturada e controlada
pelas decisões alheias (WOLFF, 1996, p. 18).
Como seria a vida num estado de natureza, ou seja, num
mundo sem governo?
Comparação entre os filmes “A Ilha de Coral”, de
R. M. Ballantyne e “O Senhor das Moscas”, de William Golding. Ambos os filmes
narram situações opostas; no filme de Ballantyne, três rapazes ingleses estão
numa ilha deserta, mas com coragem, inteligência e cooperação, afugentam
piratas e selvagens nativos, desfrutando de uma vida boa. Já no filme de
Golding, um grupo de crianças está numa ilha deserta, mas logo se envolve em
disputas e lutas tribais.
Alguma
vez existiu um estado de natureza?
Rousseau (1712-1778) afirmava que o tempo de transição
de um estado de natureza para uma sociedade civil era maior do que a idade do
mundo, portanto, seria incoerente pensar que as sociedades modernas haviam
surgido desta maneira. Por outro lado, também acreditava existir exemplos de
povos a viver num estado de natureza.
Locke (1632-1704) pensava existir muitos grupos que
viviam desta forma na América do século XVII.
Hobbes (1588-1679) pensou ver seu país
afundar-se num estado de natureza com a guerra civil inglesa. “Em Leviatã, traçou um quadro dessa situação
hipotética, esperando convencer os leitores das vantagens do governo (WOLFF,
1996, p.19)”.
[...]
Por vezes, diz-se que não só os seres humanos sempre viveram sob um estado,
como essa é a única forma de eles conseguirem viver. De acordo com esta
perspectiva, o estado existe naturalmente,
no sentido de ser natural para os seres
humanos. Talvez não fôssemos seres humanos se vivêssemos numa sociedade sem
estado. Talvez fôssemos uma forma inferior de vida animal. Se os seres humanos
existem, também existe o estado (WOLFF, 1996, p. 19).
Hobbes
Segundo o autor, Hobbes afirma que nada poderia ser
pior do que a vida sem a proteção do estado e, que, por isso, um governo forte
é essencial para evitar que caíamos numa guerra de todos contra todos.
O autor ainda diz que Hobbes defende a existência de
duas chaves para compreensão da natureza humana. A primeira seria o autoconhecimento
a fim de compreender a natureza dos pensamentos, esperanças e medos humanos. A
segunda diz respeito à matéria que compõe os seres humanos, ou seja, o corpo
que garante o movimento. De acordo com Wolff, Hobbes adotara o princípio de
movimento de Galileu para desenvolver uma visão materialista mecanicista dos
seres humanos, onde estes estariam sempre em movimento, ou seja, em busca de
algum objeto de desejo para alcançar felicidade. Essa busca conduziria a
sociedade a um estado de natureza.
O medo da morte, esta que poderia ser mais
brutal num estado de natureza, leva o povo a criar um estado para evitar uma
guerra de todos contra todos.
Como
Hobbes pensou isto?
De acordo com o autor, Hobbes entende que poder é o
meio para se obter alguma coisa. Considerando que a felicidade se dá pela
obtenção dos objetos de desejo, para alcançar a felicidade é necessário se
tornar poderoso.
A única maneira de se manter o poder é tornando-se
mais poderoso. Ora, se todos buscam poder para serem felizes e esse desejo de poder
é insaciável, essa busca é, por natureza, competitiva.
Competição
não é guerra, portanto, por que seria num estado de natureza?
O autor diz que Hobbes parte do pressuposto de que num
estado de natureza há escassez de bens. Duas pessoas que desejam o mesmo tipo
de coisa acabariam por desejar a mesma coisa, portanto, uma tentaria dominar a
outra. Num estado de natureza todos estariam vulneráveis a um ataque, seja por
ter algo que outrem deseja, seja apenas por representar alguma ameaça, como
também, para melhorar a reputação. Lucro,
segurança e reputação seriam três razões para agressão num estado de
natureza.
Os
seres humanos são cruéis?
De acordo com Wolff, Hobbes não acha que os seres
humanos são cruéis, pois na sua maioria, não retiram prazer do sofrimento
alheio, mas são egoístas, uma vez que estão dispostos a satisfazerem seus
desejos egocêntricos. O medo de perderem algo ou serem atacados faz com que
pelejem por autodefesa.
Teria
Hobbes, razão em considerar tamanha desconfiança num estado de natureza?
Wolff afirma que Hobbes partira do pressuposto de que,
se numa sociedade regida por leis ainda assim trancamos nossas casas em relação
aos vizinhos e pessoas de fora, ou guardamos coisas trancadas contra pessoas de
dentro de nossa própria casa, quanto mais num estado de natureza onde não
haveria regras e todo mundo pudesse pegar o que quisesse de outrem.
Há
moralidade no estado de natureza?
De acordo com o autor, Hobbes diz não se aplicar o
conceito de moralidade no estado de natureza, pois não há certo e nem errado,
não há justiça e nem injustiça. Considerando que ser injusto é desrespeitar uma
lei, mas para que a lei exista alguém precisa cria-la e ter poder para fazer
com que seja cumprida. No estado de natureza não há legisladores e cabe a cada
um fazer aquilo que considera adequado para se auto preservar. A isto Hobbes
chama de Direito Natural de Liberdade.
Além do direito natural de liberdade, Hobbes defende
também a existências de Leis da Natureza.
A primeira delas diz que todo homem deve buscar a paz na medida em que se tem
esperança de obtê-la, no entanto, caso não consiga, pode usar de todos os
recursos da guerra para tê-la. A segunda lei seria abrir mão do direito de
todas as posses e se satisfazer com a liberdade em relação aos outros que, por
sinal, deve ser a mesma liberdade que deve dar aos outros em relação a si
mesmo. A terceira seria honrar qualquer aliança que fizerem. Em suma, não fazer
aos outros o que não faria a si mesmo, uma negativa da regra bíblica de não
fazer ao próximo o que não gostaria que te fizessem.
Isso
não seria um código moral?
De acordo com o autor, Hobbes não compreende as leis
da natureza como códigos morais, mas como conclusões da razão que permitiriam a
cada pessoa melhor possibilidade de preservar a própria vida.
Haveria em Hobbes dois tipos de racionalidade,
individual e coletiva. A razão individual levaria à guerra, a coletiva seria o
melhor para cada indivíduo contanto que todos agissem da mesma forma.
Todos
tem o dever de respeitar as leis da natureza num estado de natureza? Se sim, o
reconhecimento das mesmas seriam suficientes para que fossem cumpridas?
A esta questão, Hobbes afirma que o ideal é que todos
respeitem, mas que o indivíduo só deve respeitar na certeza de que todos os
outros respeitam, do contrário seria destruído. Mas, no estado de natureza o
nível de suspeição e receio mútuos é tão grande que as leis raramente seriam
cumpridas.
O autor afirma então, que Hobbes propõe a
criação de um soberano em solução a essa situação. O soberano deve ser forte o
suficiente para cingir o povo às leis e punir quem as violarem. Com isso, a
grande vantagem do estado seria criar condições para que as pessoas possam
obedecer às leis da natureza em segurança.
Locke
Segundo o autor, Locke contrapunha Hobbes em dizer que
o estado de natureza não se aproximava em nada com o estado de guerra. O
filósofo supunha que seria possível ter uma vida aceitável sem governo.
Como
Locke chegou a essa conclusão?
Para Locke, o estado de natureza é um estado de
liberdade, igualdade e regido por uma lei da natureza, tal como Hobbes dissera,
porém, com uma interpretação totalmente diferente.
Em relação à igualdade, enquanto que para Hobbes
consistia numa afirmação das capacidades físicas e mentais, para Locke
consistia numa afirmação moral de direitos; ninguém tem o direito natural de
subordinar outra pessoa. Locke estava fazendo uma crítica ao direito divino
numa perspectiva feudal.
A lei da natureza em Hobbes resume-se em buscar a paz,
se e somente se todos buscarem; caso contrário, deve-se fazer uso das vantagens
da guerra. Em Locke, a lei da natureza tem um aspecto teológico e consiste na
ideia de que a humanidade deve ser preservada na medida do possível e ninguém
deve prejudicar outra pessoa, pois, embora não haja superiores na terra, existe
um no céu. De acordo com Locke todos somos criaturas postos na terra para
servir os propósitos de Deus, não havendo assim necessidade de fazer perdurar
os prazeres uns dos outros.
Enquanto a liberdade natural em Hobbes consiste em
fazer o que for necessário para auto preservar-se, em Locke consiste em fazer
apenas o que a lei natural moralmente permite. Desta maneira, embora a lei
natural impeça a violação alheia, isso não representa uma limitação de
liberdade.
Todos
cumpririam a lei da natureza?
Hobbes defendia o papel de um soberano capaz de punir
quem transgredisse as leis. Em Locke, não há um soberano com poder de punição,
pois todos são iguais num estado de natureza. Portanto, todos tem o poder executivo da lei da natureza caso
alguém transgrida as leis colocando em perigo a paz e segurança de todos. Logo, Locke crê que todos se juntarão à
vítima da transgressão para fazer justiça.
A punição deve ser suficiente para que a pessoa se
arrependa e servir de exemplos para que outras pessoas não façam o mesmo.
E
quanto à escassez de recursos capaz de levar à guerra, segundo Hobbes?
Locke defende que, se a lei da natureza pode ser
garantida, o direito natural de propriedade privada também. Entende que as
pessoas podem ter uma parte de terra onde podem cultivar alimento sem ter a
permissão de todos os outros para poder consumir, do contrário e por raz’oes
lógicas, a humanidade morreria de fome. Tendo em mente que há muitas terras e
que as pessoas desejariam cultivar alimentos reservadamente, poderiam viver em
paz.
Em relação a isso, Hobbes diria que às vezes seria
muito mais fácil roubar de alguém do que cultivar e isso já seria um motivo
para uma possível guerra. Nessa hipótese, o direito de punição não seria
eficaz, pois o transgressor poderia voltar com um poder maior. Por esta razão
Hobbes afirma a necessidade de algum órgão fixo capaz de punir.
Embora Locke não achasse que a escassez levaria,
necessariamente à guerra, entendia que caso algo se tornasse objeto de disputa
a convivência no estado de natureza iria piorar e poderia até chegar num ponto
de ser insuportável.
Um dos maiores problemas para Locke seria quanto à
interpretação da lei da natureza, ou seja, a administração da justiça em saber
se determinada pessoa cometeu de fato uma ofensa, e se a punição de fato é
adequada. Além deste, a invenção do dinheiro contribuiria para a escassez de
terra, uma vez que as pessoas não precisariam se preocupar mais em produzir
mais do que o consumo já q poderiam vender e guardar o dinheiro que não
estraga.
Esses problemas são pontos a favor da teoria de
Hobbes sobre a escassez e a necessidade de um governo soberano.
Rousseau
Segundo o autor, Rousseau afirmara que Hobbes e Locke
não fizeram de fato uma análise do estado de natureza, mas sim projetaram ideia
da sociedade para o estado de natureza, descrevendo assim o homem social e não
natural.
Enquanto Hobbes parte da premissa de que as pessoas
buscam continuamente a felicidade a qualquer custo, Rousseau muda a premissa de
que por natureza, as pessoas seriam piedosas e com desejo de se ajudarem uns
aos outros.
A piedade ou compaixão seria o combustível que
impeliria as pessoas a não prejudicarem umas as outras. Uma pessoa não tomaria o
sustento de outra possuindo alternativas de sustento.
Assim como Hobbes, Rousseau afirma que o estado de
natureza não possui noções de moralidade, no entanto, as pessoas respeitariam
umas as outras por aversão ao mal, pois as pessoas são naturalmente compassivas
e ficam perturbadas com o sofrimento alheio.
Partindo do princípio da aversão a maldade, as pessoas
escolheriam trabalhar para garantir o próprio sustento e, essa necessidade
estimularia a inteligência e a criação de instrumentos. Juntamente com isso
surgiria a ideia de cooperação e, consequentemente, tempo livre.
A partir daí, os problemas começariam, pois estando
ociosas, as pessoas passariam a fabricar coisas para além da necessidade de
sobrevivência, ou seja, por luxo e este seria o início da corrupção e das
guerras.
Em outras palavras a guerra chega devido à formação
das primeiras sociedades rudimentares. Nesse ponto, os ricos tentariam criar
regras para preservar o que possuíam contra os seus atacantes e eis que surgem
as primeiras sociedades civis.
Anarquismo
Alguns anarquistas tentaram resistir a ideia de que um
estado soberano seria necessário passa assegurar a preservação da raça humana.
William Godwin se distinguiu de Rousseau por dois motivos principais: 1-) o ser
humano “aperfeiçoado” poderia se tornar pacífico e cooperativo. 2-) essa
natureza boa não estava no passado distante como dizia Rousseau, mas constitui
num futuro inevitável onde um estado soberano não seria necessário.
Peter Kropotkin, anarquista russo, defendia que todas
as espécies animais, incluindo a espécie humana, se beneficiavam com o auxílio
mútuo. Essa teoria foi apresentada como alternativa à teoria da evolução por
competição de Darwin. O anarquista reuniu várias provas do mundo animal de que
cooperação e concluiu que as espécies mais fortes eram as mais capazes de
desenvolver a cooperação.
A raça humana por ser dotada de razão, logo chegaria à
conclusão de que, a guerra sendo ruim para todos, a cooperação seria a melhor
alternativa.
Hobbes diria sobre isto que, também há muitas provas
de competição e exploração e, que, muitas vezes racional. Essas seriam
suficientes para prejudicar o espírito cooperativo.
Contra esta hipótese, os anarquistas dizem que não há
pessoas com essas características, se sim, são pessoas corrompidas pelo próprio
estado. Enquanto que o estado sempre fora posto como solução para o
comportamento antisocial, os anarquistas afirma que o mesmo é que é responsável
por tal comportamento.
Mas
se eram bons naturalmente, como que surgiu um estado capaz de corromper?
A resposta mais sensata seria de que apenas alguns
indivíduos ardilosos encontraram um meio de tomar o poder. Nesse ponto, o
anarquismo já parece se autodestruir.
Alguns anarquistas mais ponderados reconhecem a
importância de especialistas na sociedade a fim de aconselhar. Reconhecem
inclusive a necessidade de uma força militar para tratar de conflitos
internacionais.
Mas
com essas estruturas o anarquismo não se tornaria um estado?
Nesse ponto, o anarquismo já não se distinguiria
tanto de um estado, mas em relação a isso, os anarquistas afirmam que essas
estruturas não podem ser consideradas como estruturas estatais, pois elas
seriam formadas por pessoas voluntárias, permitindo a autoexclusão, de maneira
que nenhum estado o é.
Referência bibliográfica
Wolff, Jonathan – Introdução à filosofia política, 2º Edição, 2011, Ed. Gradiva,
Lisboa
Imagem: Destruction of Leviathan, disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Destruction_of_Leviathan.png, acessado em: 26/04/2014